mão trança cabelo

Comentários racistas marcam reunião da Anvisa sobre pomada modeladora

Segundo proprietária de salão de beleza que participou da reunião, fabricantes de pomadas modeladoras disseram que pessoas de cabelo afro usam os produtos de forma errada.

Por Beatriz de Oliveira

24|02|2023

Alterado em 24|02|2023

Comentários racistas e desrespeito a trancistas permearam reunião técnica da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) com as empresas fabricantes de pomada modeladora. O encontro ocorreu no dia 17 de fevereiro de modo virtual e contou com mais de 400 participantes. “Deveriam em um primeiro momento proibir somente o uso e comercialização para tranças, pois é daí que vem a grande causa do problema”, disse um participante.

O problema citado trata-se dos 780 casos de intoxicação nos olhos – causando
cegueira temporária e ardência nos olhos – decorrentes do uso de pomadas modeladoras. Devido ao número de ocorrências, a Anvisa publicou no dia 9 de fevereiro uma portaria proibindo a venda de pomadas para modelar, trançar e fixar cabelos. O órgão afirma que está em curso investigação para identificar a causa das reações adversas.

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Carolina Pinto é advogada e dona do salão de beleza Ras

©arquivo pessoal

Carolina Pinto, advogada e dona do salão de beleza Ras, focado em tranças e sediado na zona oeste da capital paulista, participou da reunião da Anvisa e presenciou falas racistas por parte dos fabricantes. Segundo ela, foram mais de cinco horas de encontro. A empresária ficou sabendo da reunião e decidiu participar após ver uma publicação no site da Anvisa informando sobre o encontro e disponibilizando e-mail para interessados.

“Posso afirmar que foi a pior reunião que eu já participei na minha vida, a ponto de eu ter que interromper a reunião e questionar o diretor da Anvisa sobre os comentários preconceituosos que estavam acontecendo no chat por parte dos fabricantes. Eu nunca vi tanto preconceito e racismo escancarado em um lugar só”, relata.

Em apresentação usada no dia do evento e disponibilizada pela Anvisa, o órgão afirma que entre as possíveis causas para os efeitos adversos está a hipótese das fórmulas desenvolvidas pelas empresas responsáveis não serem seguras. Além disso, as investigações apontam que foram identificados ingredientes com potencial de causar reação adversa ocular.

Apesar disso, fabricantes presentes na reunião insistiram em culpar as trancistas e quem usa tranças. “Está totalmente correlacionado ao modo de uso das trancistas”, escreveu um dos presentes. Houve também quem sugerisse que a proibição das pomadas deveria ser feita apenas para aquelas destinadas a tranças e que os casos de irritação só atingiram pessoas com cabelo afro, o que não é verdade.

“Havia pessoas falando que esse problema acontecia porque as pessoas não lavam as tranças por mais de 30 ou 60 dias”, conta Carolina. Segundo ela, os fabricantes se mostraram mais dispostos à proibição da pomada para tranças do que em rever as fórmulas de seus produtos.

A empresária relata que as poucas pessoas negras – ela identificou menos de dez – presentes na reunião rebateram os comentários racistas. “Querer colocar a responsabilidade nas tranças e no cabelo afro flerta bastante com o racismo, pessoal. Tenham noção e pelo menos finjam ser profissionais”, escreveu uma participante no chat.

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A empresária Carolina Pinheiro participou de reunião da Anvisa e enviou ao Nós, mulheres da periferia registros dos comentários racistas © arquivo pessoal

A empresária Carolina Pinheiro participou de reunião da Anvisa e enviou ao Nós, mulheres da periferia registros dos comentários racistas © arquivo pessoal

A empresária Carolina Pinheiro participou de reunião da Anvisa e enviou ao Nós, mulheres da periferia registros dos comentários racistas © arquivo pessoal

A empresária Carolina Pinheiro participou de reunião da Anvisa e enviou ao Nós, mulheres da periferia registros dos comentários racistas © arquivo pessoal

A empresária Carolina Pinheiro participou de reunião da Anvisa e enviou ao Nós, mulheres da periferia registros dos comentários racistas © arquivo pessoal

A empresária Carolina Pinheiro participou de reunião da Anvisa e enviou ao Nós, mulheres da periferia registros dos comentários racistas © arquivo pessoal

Em seu momento de fala na videochamada, Carolina deixou de fazer uma pergunta que havia planejado sobre a regularização das pomadas modeladoras para alertar o diretor da Anvisa Alex Campos sobre os as falas racistas por parte dos fabricantes. No entanto, nada foi feito, a empresária recebeu como resposta que a proibição das modeladoras havia sido feita em “homenagem” a pessoas negras.

Carolina questiona ainda a posição da Anvisa frente ao assunto, que não se comprometeu a endurecer a regularização dos produtos. Atualmente as pomadas modeladoras são isentas de registro, as empresas devem apenas comunicar o órgão por meio de notificação sobre a fabricação. Por outro lado, é necessário que o fabricante tenha dados que comprovem a segurança dos itens.

“Eles [Anvisa] disseram que isso [mudança nos processos de regularização] aumentaria muito a demanda de serviço e não iriam fazer isso. Falaram que iriam continuar investigando e pediram para os fabricantes criarem grupos de investigação para identificar qual componente causa o problema”, conta.

A apresentação utilizada pela Anvisa no encontro recomenda aos fabricantes que reavaliem a segurança de suas pomadas modeladoras e investiguem eventos adversos. “O diretor Alex Campos reiterou o compromisso da Agência com o tema e o esforço da instituição para estabelecer um plano de ação a fim de identificar a solução regulatória com a brevidade necessária. Isso para que os produtos possam retornar ao mercado com garantia de sua segurança, a fim de proteger a saúde dos usuários”, disse a instituição em nota.

Além do racismo presente em todas as esferas do cotidiano brasileiro, a reunião explicitou para Carolina a desvalorização da profissão de trancista. “Eu sinto que tem um olhar muito negativo e pejorativo para a trança”. A ocupação de trancista e cabeleireiro étnico é reconhecida pelo Ministério do Trabalho desde 2009.